sábado, 30 de janeiro de 2010

0 (ZERO)

é preciso saber usar
qualquer coisa a seu favor
é preciso aceitar a dor
e voltar a caminhar
mesmo sob a própria sombra
é urgente ressucitar
cada vez que um eu morrer
e voltar a perceber
o poder que nos assombra
é preciso estar à sós
e atento a cada voz
pra escutar o que não fala
necessário é permitir
que a besta possa emergir
pra revelar sua força
do fundo da sua fraqueza
deixar fluir a certeza
da única voz que não cala

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

APRESENTAÇÃO

Meu nome não digo mais
Como fiz tempos atrás
Em que andava distraída

Deixo a alma nua à mostra
A quem quiser olhar a ostra
Que se abre oferecida

Como Shakespeare dizia
Com sua sábia poesia
O que é um nome afinal?

Meu coração apresento
É espaçoso aposento
Nele só não cabe o mal

A quem o quiser conhecer
Não precisa nem bater
Basta dar a senha certa

Não tem porta esta pousada
Pra fazer dele morada
Para em frente e diz "Desperta!"

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

MORTE

caminha ao meu lado, mas sem pressa
de chegar, pois és o que me resta
a companheira certa no caminho incerto

e não te prives de tocar-me o ombro
a me lembrar e me causar assombro
com tua mão que está sempre por perto

impulsiona meus pés, mas devagar
pois é para ti que estou a caminhar
em meu caminho vasto e tão deserto

sem tua companhia aqui presente
a recordar que estás sempre iminente
já estaria eu morta sem sequer saber

é o teu sopro frio que me anima
embora tu me atraias feito ímã
rumar a ti é o que me faz viver

não quero apagar-te do meu pensamento
para andar mais viva a cada movimento
e enfim lançar-me em teus braços pra morrer

XXV

Quem é esse que caminha
Soberano e estrangeiro
Feito rei exilado pelos meus sonhos

Quem é esse que marca meu corpo
E circula em meu desejo
Com a embriaguez da poesia

Quem é esse que me assombra
Fantasma e exorcista
Rondando minha noite vazia

Quem é esse que me invade
Posseiro da minha alma
Domador dos meus sentidos

Quem é esse que me falta
Mais que a água ao deserto
Contorcendo minhas vísceras de ausência

Quem é esse que sopra
A vida em minhas narinas
Feito um deus que me ordenasse respirar

Quem é esse estranho que tanto sei
Dentro de mim
Feito a parte que faltava à minha integridade

Quem é esse que antes de eu nascer
Já me tinha cativa
Selada para ele onde quer que eu fosse

Quem é esse fragmento
De eternidade
Onde me completo e me desfaço

Quem é ele

XXIV

dentro da tua presença eu permaneci, imóvel
de tamanho espanto
e caminhei com minha pele por teu abraço
à exaustão dos poros
fatiguei as mãos insaciáveis do teu contato
derramei as vestes da minha história em busca
do teu gosto com os sete sentidos
rasguei meu peito em recolher-te todo
para dentro de mim
desejei gravar-te em minhas veias pela eternidade
e quis que cada parte do meu ser guardasse nítida
a memória de quem és
a sensação de quem somos
e com a fome de quem atravessou doze desertos
em direção à tua fonte
provei à larga o bálsamo destes olhos
converti em lábios todos os meus órgãos
reverti o tempo e voltei ao antes de nós dois
e após enfim o êxtase de ser-te a tal ponto
que apaguei de mim quem jamais fui sozinha
acordo ainda embriagada
inteiramente dilacerada
chorando ainda de prazer

EU

Da treva profunda dentro do meu ser
Vejo luminosa sombra a alvorescer
E como no espelho alvo do assombro
Identifico ao mirar, por sobre o ombro
O meu próprio eu dentro de um outro ser

E esta criatura estranha que me habita
De similaridade quase infinita
Sou eu, um outro eu, com outra poesia
E, olhando a mim mesma, numa análise fria
Uma idéia se fixa, faz meu corpo estremecer

Esse outro ser que vive em mim é tão diverso
Que viver o que for me parece perverso:
Não sei qual, de mim, sou eu à vera
E em cada alvorescer de primavera
Jamais saberei se sou eu mesma a viver.

(Serei espectadora do meu próprio ser?)

XVIII

A morte que se teme é uma quimera
E se não fosse seria um presente
Eternizaria a todas as criaturas
Com a solenidade do seu momento
Com a sua presença inevitável
Mas esta morte não existe
Existe uma outra morte, essa sim
Fria e estática como geleira
Dura e imutável como o tempo
A morte
É o escudo de amargura
Com que o doce se traveste
É o silêncio indiferente
Do que transborda
É a vontade sufocada
Pelas mãos do medo
É o esquecimento absoluto
Por parte daquele a quem se ama
É a espera de uma vida inteira
Pelo que chegou quando nascemos

XVIIII

Ela: palavra que me exaspera
não por alguma querela
nem porque queira sê-la
mas por eu ser a outra

ESPERA

O vento traz-me presságios, vaticino
E qual o som do mais doce dos sinos
Meu ouvido capta o uivo frágil desta hora
Em meu transe derradeiro vejo luzes
E o tempo entre eu e elas são mil cruzes
A me torturar com sua atroz demora

Vejo inevitável destino de delícias
E acalentada por tantas e tão ternas carícias
Minha alma espera aflita no calor do inferno
Adivinho e vislumbro um paraíso em vida
E embora saiba que para encontrá-lo não há saída
Estou à mercê dos caprichos de um tempo eterno

As horas passam, e os dias, e os anos
E embora cerquem-me os desenganos
Tal profecia mais me persegue e mais insiste
E quanto mais a busco na alegria da certeza
Tanto mais o tempo, em sua serena avareza
Molda em mim a escultura de um anjo triste

A cada dia que nasce e a cada passo
Silenciosamente eu sei que traço
O caminho entre a maldição e a sorte
E na jornada insana o que mais me apavora
É pensar se esta ventura tanta que tanto demora
Não há de vir somente com a morte

DES(A)TINO

Diante da fogueira incandescente
Vejo o tempo em luz iridescente
Sorrindo a maldição de tantas eras
E me aprisionam garras de mil feras
Para que observe tudo o que se passa
E veja a alegria e a desgraça
Passiva e arrebatada de agonia
A assimilar toda a sabedoria
Do mesmo tempo que liberta e mata
Como se fosse o homem a barata
Que o tempo caça e esmaga com prazer
Com o qual faz o que lhe apraz fazer
Vejo o Senhor Absoluto Tempo escarnecer
Do homem que em sua vaidade quer crer
Ser ele o senhor absoluto da matéria
E vejo o tempo reduzi-lo à miséria
Sem que ele possa ao menos reagir
O homem passa e o tempo volta a emergir
De si mesmo, em ciclos infinitos
E embora o homem brade com seus gritos
A soberania que acredita sua
O tempo, apenas com a presença nua
Desmancha toda a ilusão desta vaidade
Estático em seu lugar, em sua serenidade
Diante da fogueira imensa onde assisto
Como num filme horrendo de Mefisto
O tempo agir em tudo e a tudo desfazer
Ouço a própria voz do tempo a me dizer

“O que me vês fazer com a arrogância
Do homem que nada vê senão ganância
Ao querer ser senhor e ter de curvar-se a mim
Não passa de uma ironia sem fim
Por isso rio tanto sem poupar a nada
Porque o destino faço eu, desta jornada
Mas a mim quem faz sem disto ciência
É o próprio homem, em sua demência
Que tanto acredita no que produz
Que carrega-me resignado feito uma cruz
Quando podia libertar-se sabendo disto
Que é ele quem me cria, não existo”